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Legislação já previa punição, mas branda; a previsão agora é de até quatro anos de detenção
Em uma sexta-feira de junho de 2011, dois PMs perseguiram dois suspeitos em uma moto pelas ruas de Paraisópolis, a mesma favela da zona sul de São Paulo onde uma ação policial terminou com nove jovens mortos pisoteados no começo deste mês.
No episódio de oito anos atrás, essa busca incluiu invasão de residências sem mandado judicial, detenção ilegal para averiguação, mudança de lugar de prova. Os dois alvos foram presos acusados de terem atirado. Indiciados pela polícia e denunciados pelo Ministério Público, foram inocentados pela Justiça.
Esse tipo de caso é um dos principais alvos da nova lei de abuso de autoridade, aprovada neste ano pelo Congresso e que entra em vigor em 3 de janeiro de 2020.
A nova legislação atinge, dentre outros órgãos, integrantes das polícias, do Ministério Público e do Judiciário e especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade, além de prever punições.
Boa parte das ações já era proibida, mas de maneira genérica e com punição branda – a previsão agora é de até quatro anos de detenção.
Juízes, promotores, defensores públicos e advogados ouvidos pela Folha dizem duvidar que a nova lei provoque uma onda de punições, até mesmo devido aos filtros após as denúncias. Uma representação contra abuso de autoridade necessariamente tem que ser ajuizada por um membro do Ministério Público e julgada por um magistrado.
Embora as mudanças possam inibir a atuação de vários segmentos, a avaliação predominante de especialistas é que os excessos policiais tendem a ser os principais alvos.
“A lei acaba sendo mais efetiva para quem está na ponta da investigação, que são os policiais. Eles têm maior contato com os investigados, são eles que cumprem os mandados, que fazem as abordagens”, diz o promotor Rogério Sanches Cunha, professor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.
O advogado Eduardo Capano, que defende policiais civis, militares e federais acusados de irregularidades, concorda. “Vai pesar mais contra policiais”, afirma.
“Quando um agente público for denunciado por abuso de autoridade, a representação contra ele irá para a mão de um promotor e será julgada por um juiz. Então, acho difícil que ações assim contra promotores e juízes prosperem”, completa.
“Eu advogo há 25 anos para sindicatos de policiais. Eu tenho cem casos de condenação. Mas na magistratura e no Ministério Público quase não existe punição. É muito esporádico”, afirma.
Durante toda a tramitação da nova lei houve polêmicas. De um lado, magistrados, promotores e policiais viam margem para punir quem combate a atuação do crime organizado e a corrupção. De outro, defensores dos direitos humanos argumentam que a proposta não pune quem age corretamente.
Aprovada pelo Congresso em setembro, a nova lei tramitou com rapidez após a obtenção, pelo site The Intercept Brasil, de mensagens entre integrantes da Lava Jato em Curitiba e que colocaram em xeque a conduta da força-tarefa e do ex-juiz Sergio Moro.
Os diálogos indicaram, entre outras coisas, que Moro orientou a Procuradoria a juntar documentos e indicou provas contra réus, além de determinar a ordem das fases da investigação. Procuradores requisitaram documentos sigilosos da Receita sem ordem judicial.
O presidente Jair Bolsonaro chegou a vetar pontos de 19 dos 45 artigos do projeto, numa tentativa de aliviar a norma, mas boa parte dos vetos foi derrubada pelo Congresso.
Com isso, foi retomada, por exemplo, a punição de até quatro anos de detenção para quem constranger um preso, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro.
O criminalista Augusto Arruda Botelho, conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), diz que a lei anterior que tratava de abuso de autoridade, editada em 1965, durante a ditadura militar, tinha “defeitos técnicos evidentes e trazia em seu texto tipos penais muito abertos”.
“A lei atual é mais clara, objetiva e traz um rol muito mais taxativo de condutas que podem ser consideradas criminosas”, diz.
O promotor Sanches Cunha, porém, avalia que na nova lei ainda há pontos vagos.
Ele cita como exemplo a a punição do agente público que impede um preso de se encontrar com seu defensor “em prazo razoável antes da audiência”, mas sem determinar qual será esse prazo.
O promotor cita também a criminalização de alguém que dê início a um processo sem justa causa fundamentada. “Este conceito de justa causa fundamentada é muito vago”, diz. “Na doutrina temos pelo menos cinco definições distintas. Essa indeterminação não combina com normas que tratam de crimes.”
O presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais), Fernando Mendes, diz não acreditar que haverá uma onda de punições, mas cogita que no início pode haver uma série de representações contra investigadores e juízes. “O que é ruim. O juiz terá que perder tempo se defendendo dessas representações, mesmo que não haja motivo para punição”, diz.
O procurador-geral do Estado de São Paulo, Gianpaolo Poggio Smanio, considera que haverá um efeito prático aos investigadores. “Todos terão que ser mais cuidadosos na justificativa de suas ações”, diz. Mas vê risco de a nova lei inibir ações do Ministério Público. “É preciso assegurar à sociedade e aos promotores que eles possam fazer seu trabalho.”
Um ponto que deverá servir de freio para uma enxurrada de representações é um artigo que determina que só haverá abuso de autoridade se os agentes públicos agirem de maneira intencional para prejudicar alguém.
“O agente público só vai ser incriminado se for provado dolo, ou seja, que ele agiu intencionalmente para cometer um abuso, que ele agiu com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, por capricho ou satisfação pessoal”, diz Rogério Sanches Cunha.
O defensor público Renato de Vitto ainda destaca um outro fator de fora da lei para imaginar que não haverá uma onda de denúncias.
“Minha experiência na Defensoria, com réus pobres, é que as pessoas têm medo de represália. Já existia uma lei contra abuso de autoridade antes e as pessoas não têm coragem de denunciar, por temer represália dos policiais”, diz.
Invasão de casa e mudança em provas enquadrariam PMs O caso de dois rapazes acusados da tentativa de homicídio de dois policiais militares, em Paraisópolis (zona sul de São Paulo), em junho de 2011 foi analisado a pedido da Folha sob a ótica da nova lei de abuso de autoridade.
O criminalista Augusto de Arruda Botelho, conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), com apoio do estagiário André Pereira Lima, leu os três volumes do processo contra os acusados de atirar nos dois PMs e avalia haver “várias ações que se enquadram na nova lei”.
O episódio envolveu dois policiais da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas), que iniciaram uma perseguição contra dois suspeitos de moto em uma sexta-feira, por volta das 17h.
Pela denúncia do Ministério Público, feita com base no relatório policial, os rapazes foram acusados de tentativa de homicídio porque teriam feito vários disparos de arma de fogo contra os PMs. O capacete de um dos soldados foi perfurado por um tiro, que não atingiu a sua cabeça.
Em março de 2014, um dos suspeitos foi inocentado pelo Tribunal do Júri, que entendeu não haver provas contra ele. Em novembro de 2018, outro rapaz foi também foi inocentado pelos jurados pelo mesmo motivo.
Os nomes dos jovens são omitidos a pedido da Defensoria Pública de São Paulo, por questão de segurança.
No episódio de Paraisópolis, os policiais chegaram a Vinícius (nome fictício), segundo eles, por meio de um RG caído próximo de cápsulas deflagradas. A versão oficial, porém, foi confrontada por depoimentos de testemunhas que presenciaram a entrada dos policiais na favela.
A mãe de Vinícius diz que os policiais entraram em sua casa, sem autorização, e pegaram os pertences dele, inclusive a carteira onde estaria esse RG, tudo isso minutos depois do tiroteio.
Os policiais continuaram a busca pelos outros atiradores e encontraram André (nome fictício), menor de 18 anos, que, em conversa informal, sem a presença de um adulto, teria ainda apontado Iuri (nome fictício) como sendo outro atirador.
Com nome e endereço dos suspeitos em mãos, os policiais fizeram busca e apreensão na casa deles e de seus vizinhos. Os soldados disseram que entraram sem mandado nas residências dos moradores da favela porque haviam sido autorizados pelos moradores. O que é negado por várias testemunhas.
André e Iuri foram levados de camburão ao 89º Distrito Policial, no Morumbi. Iuri ficou detido por todo o dia sem que sua prisão tivesse sido oficializada. O pedido de prisão temporária só foi feito às 22h. Em poucos minutos houve parecer favorável do Ministério Público a favor da prisão. Em menos de uma hora um juiz determinou que Iuri permanecesse preso.
Segundo Botelho, os procedimentos dos policiais poderiam ser enquadrados nos artigos 22 e 25 da nova lei de abuso de autoridade.
O artigo 22 diz que comete crime um agente público que invade ou adentra um imóvel clandestinamente ou à revelia da vontade do ocupante e sem determinação judicial.
A norma também enquadra agentes públicos que coagem ou ameaçam para permitir acesso ao imóvel. A pena deste crime varia de 1 a 4 anos de prisão e multa.
O artigo 25, por sua vez, diz que é crime obter prova durante uma investigação por meio ilícito. A pena também é de 1 a 4 anos de prisão e multa.
Os policiais também invadiram a casa de Vinícius, que foi levado detido sem mandado judicial.
“Trazendo André na viatura chegaram na casa de Vinícius, entraram e perguntaram sobre uma arma de fogo. Vasculharam a sua casa, e a casa de vizinhas. As vizinhas de Vinícius prestaram queixa na Corregedoria da Polícia Militar, mas a reclamação foi arquivada”, diz Botelho. No dia seguinte, os policiais voltaram a invadir a casa de Vinícius sem um mandado de prisão.
O conselheiro do IDDD contabilizou que nesses dois dias que os policiais militares violaram três vezes esse artigo 22 da nova lei, que criminaliza a busca em residência sem ordem judicial.
O depoimento de um parente de Vinícius também aponta que os policiais podem ter fraudado a principal pista que incriminava o rapaz.
“A irmã de Vinícius relata que os policiais entraram sem mandado na cassa deles e pegaram pertences do suspeito, como a carteira. Coincidentemente, havia aparecido o RG dele no local dos disparos”, diz Botelho.
Além da invasão do domicílio sem o mandado, neste caso há também o enquadramento no artigo 23 da nova lei, que diz que é crime mudar lugar de provas durante uma investigação para responsabilizar alguém. A pena também vai de 1 a 4 anos de prisão.
O defensor público Renato de Vitto, um dos responsáveis pela defesa dos dois réus, diz que a Defensoria recorreu a tribunais superiores alegando que a investigação estava repleta de casos de abusos de autoridade.
“Por conta da ausência do mandado de busca e apreensão e da ilicitude de toda prova que decorreria dessa diligência e que teria viabilizado a identificação dos autores, a Defensoria Pública interpôs recurso especial e recurso extraordinário no STJ e no STF alegando a nulidade de todo o processo por conta desses atos que configuram, na nossa análise, abuso de autoridade claríssimo, mas os recursos foram negados”, diz Renato de Vitto.
O que diz cada artigo
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei. A pena também se aplica a agente público que coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a permitir o acesso a imóvel ou suas dependências. Pena: detenção de 1 a 4 anos e multa
Art. 23. Inovar artificiosamente, no curso de diligência, de investigação ou de processo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de eximir-se de responsabilidade ou de responsabilizar criminalmente alguém. Pena: detenção de 1 a 4 anos e multa
Art. 25. Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito. Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude. Pena: detenção de 1 a 4 anos e multa
Entenda
O que pretende a lei?
O texto, que entra em vigor no próximo dia 3, especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade e prevê punições. Boa parte das ações já são proibidas, mas o objetivo é punir o responsável pelas violações
Que condutas são consideradas abuso?
Alguns exemplos:
– Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado sem que antes a pessoa tenha sido intimada a comparecer em juízo Invadir ou adentrar imóvel sem autorização de seu ocupante sem que haja determinação judicial e fora das condições já previstas em lei (não há crime quando o objetivo é prestar socorro, por exemplo)
– Manter presos de ambos os sexos numa mesma cela ou deixar adolescente detido na mesma cela que adultos
– Dar início a processo ou investigação sem justa causa e contra quem se sabe inocente
– Grampear, promover escuta ambiental ou quebrar segredo de Justiça sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei
– Divulgar gravação ou trecho sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado
– Mandar prender em manifesta desconformidade com a lei ou deixar de soltar ou substituir prisão preventiva por medida cautelar quando a lei permitir
– Violar prerrogativas do advogado asseguradas em lei
– Continuar interrogando suspeito que tenha decidido permanecer calado ou que tenha solicitado a assistência de um advogado
O que torna as condutas criminosas?
É necessário que o ato seja praticado com a finalidade de prejudicar alguém, beneficiar a si mesmo ou a outra pessoa ou que seja motivado por satisfação pessoal ou capricho
Que tipos de punições são previstas?
Medidas administrativas (perda ou afastamento do cargo), cíveis (indenização) e penais (penas restritivas de direitos). Quase todos os delitos previstos têm pena de detenção -ou seja, o regime inicial será aberto ou semiaberto. A exceção é para o artigo 10, que prevê dois a quatro anos de reclusão para quem realizar “interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”
Quem poderá ser enquadrado?
São passíveis de sanção por abuso de autoridade membros dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, membros do Ministério Público, membros de tribunais ou conselhos de contas, servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas
Quem é responsável por denunciar o abuso?
O Ministério Público, que é o dono da ação penal. Se o órgão não acionar o Poder Judiciário, a vítima tem seis meses para ingressar com ação privada